quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Pequenos Inconvenientes por Ivo Marcos Theis

O inconveniente de se estar ligado à rede é que qualquer pessoa minimamente habilidosa e suficientemente cara-de-pau, assim como qualquer ONG ou, sobretudo, empresa, pode entrar na vida privada alheia sem perguntar. É algo, assim, sutil, tipo pé-na-porta. E esse pequeno inconveniente acontece com frequência crescente com cada vez mais gente. Também pudera: segundo Wireless Mundi, 102,3 milhões de brasileiros já tinha conexão com a rede em 2013.

Quem é receptor das dezenas de bobagens que são diariamente enviadas, principalmente, por empresas inescrupulosas (deve ser algo meio genético...), vai adquirindo outra habilidade: a de identificar o que é relevante e o que não é, deletando o lixo que sufoca a caixa. Quando, porém, as mensagens são enviadas por conhecidos, não se pode distinguir logo o que é e o que não é relevante. E aí se perde um tempo precioso para evitar danos de outra natureza.

Outro dia entrou um e-mail na minha caixa indicando, no assunto, “Nota 1000”. Em respeito ao emissor, comecei a ler. Era lixo. Infelizmente, li do começo ao fim, na ilusão de extrair algum significado de seu conteúdo. Iniciava com uma pergunta: “Você sabe quantos países com governo socialista restam agora em toda a União Europeia?” Embora não me despertasse a mínima curiosidade, ocorreu-me que talvez tivesse perdido alguma revolução popular num daqueles inúmeros países afundados em crises em consequência das mais que desacreditadas políticas neoliberais. Apesar de isso ser altamente improvável – afinal, o capital convoca os governos a mobilizarem seus aparatos policiais para impedir que os povos vitimados por suas políticas reajam – arrisquei avançar meus olhos pelo monitor. E me deparei com a seguinte resposta: “Apenas 3 – Grécia, Portugal, Espanha”. Juro.

Não é que se ignorasse que quem desde 2012 governa a Grécia, em absoluta obediência às determinações que têm origem na União Europeia e no FMI, é Antónis Samarás, líder da ultraconservadora Nova Democracia. Não é que se ignorasse que quem desde 2011 governa Portugal, convicto executor das medidas mais antissociais prescritas pelas mesmas agências, é o socialdemocrata Pedro Passos Coelho. Não é que se ignorasse que quem desde 2011 governa a Espanha, sem objetar às políticas definidas pelas mesmas agências que afundam a Europa na sua mais grave crise desde o fim da Segunda Guerra Mundial, é Mariano Rajoy, do ultraconservador PP de José Maria Aznar. Nadinha disso se ignorava.

O que realmente choca, em casos como este, é a desfaçatez com que se recorre à mentira. Não há compromisso algum em argumentar a partir de fatos. Juntam-se três países governados por forças antipopulares e se as designa, sem mais, como “socialistas”. E como são “socialistas”, esses países devem pagar pelos pecados decorrentes dessa abjeta condição.

É desnecessário fazer maiores referências ao restante do conteúdo (sic) da mensagem. É mais do mesmo. É a extrema direita elogiando a filósofa Margareth Thatcher e chutando as leis que punem os ricos (sic). As vítimas, aliás, são os ricos prósperos que trabalham, enquanto os “responsáveis por tudo isso que está acontecendo no país” – no Brasil, esse país “socialista” em que se fazem coisas tão erradas como se tem feito nas “socialistas” Grécia, Portugal e Espanha – são “as pessoas que vivem do [programa] Fome Zero etc.”

Há quem leia asneiras como essas e acredita nelas. E se convence de que o mundo é assim como lhe aparece no monitor. E aí já não é mais apenas um pequeno inconveniente, como o de ter sua privacidade invadida, tipo pé-na-porta. É bem mais!
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